ARTIGOS

HÁ 40 ANOS, TIROS NA VOZ INDÍGENA DO BRASIL

Rubens Valente*

Quatro décadas depois, MPF trabalha para pedir à Justiça que Estado brasileiro
reconheça que crime foi decorrente de perseguição política da ditadura militar

 

Como nos vilões do cinema, ele veio em uma noite de chuva fina usando um casaco e com o rosto encoberto por um grande chapéu, que uma testemunha chamou até de sombrero. Fez algumas perguntas estranhas e de repente sacou o revólver e atirou à queima-roupa três vezes no indígena guarani-nhandeva de camisa azul e calça jeans que estava parado à sua frente, de óculos, magro, baixinho. Atingido no peito, perto da clavícula e no antebraço esquerdo, Marçal de Souza, o Tupã-I, uma das maiores lideranças indígenas da história do país, tombou de lado e morreu aos 63 anos. O atirador estava acompanhado de outro homem, de calça branca e um cigarro na mão, que assistiu a tudo impassível. Cumprido o ataque, a dupla correu para o mato. A poucos metros dali, um carpinteiro acordou com os tiros e correu para a varanda de sua casa a tempo de ver os dois vultos atravessando o pasto até chegarem a um veículo que os aguardava, com as luzes acesas, na beira da estrada. O carro deu um giro e arrancou, levando o grupo para a escuridão e para o anonimato. O sistema judicial nunca condenou quem mandou e quem apertou o gatilho que silenciou Marçal na aldeia indígena de Campestre, no município de Antônio João (MS).

Quatro décadas depois daquela sexta-feira, 25 de novembro de 1983, o Ministério Público Federal (MPF), na figura do procurador da República em Dourados (MS) Marco Antônio Delfino de Almeida, trabalha para pedir à Justiça que o Estado brasileiro seja instado a reconhecer que também houve, ao tempo do assassinato, ocorrido no contexto da luta de Marçal pela demarcação da terra indígena Pirakuá, em Bela Vista (MS), uma perseguição política feita por agentes da ditadura militar (1964-1985) contra Marçal.

Paralelamente à abertura da ação, um grupo formado a partir da iniciativa do MPF com uma das filhas de Marçal, a professora Edna de Souza, lideranças indígenas, a reitoria e professores da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), o cineasta Joel Pizzini, entre outras pessoas, articulam a ideia de um projeto que possa homenagear Marçal e criar um espaço de convivência, memória e estudo em Dourados (MS). O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) também não deixará a data passar em branco.

Documentos que vieram à tona a partir de meados dos anos 2000 com a abertura dos arquivos do braço do extinto SNI (Serviço Nacional de Informações) na Funai (atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas), hoje sob a guarda da coordenação regional do Arquivo Nacional em Brasília, mostram como Marçal se tornou um alvo dos agentes do governo militar no sul do então Mato Grosso. Em 1975, Marçal foi identificado pela Funai, na época presidida pelo general do Exército Ismarth Araújo de Oliveira, como alguém “que procurou aliciar os índios contra os seus capitães”, função informal atribuída a determinados indígenas em várias partes do país como autorização governamental a fim de “representar” os anseios das aldeias.

Em um relatório confidencial de 1975, o então chefe do posto da Funai em Dourados informou aos seus superiores que não queria a presença de Marçal na região. Tudo porque o indígena havia feito um discurso “sobre o problema do índio, colocou-se no papel de defensor dos mesmos, sentindo-se inclusive superior aos capitães e ao chefe do posto, mostrando-se mesmo insubordinado a esta chefia”. O preposto da Funai chamou Marçal de “insubordinado”, que fazia “uma atuação política contra o chefe do posto, capitães e, consequentemente, Funai, junto aos indígenas aldeados neste posto, além de interferência em outras áreas vizinhas”. Em razão da sua atuação política, certa vez Marçal foi violentamente espancado a mando de um dos principais “capitães” da região. Foi também algumas vezes transferido de aldeia por ordem da Funai. Sua participação em eventos públicos era acompanhada e citada em relatórios do SNI.

A perseguição não impediu que Marçal se projetasse como uma das principais lideranças indígenas do país, tendo participado da criação da Unind (União das Nações Indígenas), em 1980, sigla depois alterada, em 1981, para UNI. Em 1981, Marçal aparece nos documentos da Unind como seu vice-presidente. A entidade sem fins lucrativos “nem caráter político-partidário ou religioso” tinha como objetivos no seu estatuto a promoção da “inviolabilidade e demarcação das terras” indígenas, o uso “exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes” e a assessoria a indígenas e suas comunidades “no reconhecimento de seus direitos”.

Naquele momento da ditadura militar, montar uma organização como a UNI implicava muitos riscos. No mesmo Dia do Índio de 1981 em que a UNI ganhava força, por exemplo, agentes do Dops de São Paulo prenderam 17 pessoas ligadas ao movimento grevista dos metalúrgicos da região do ABC paulista, dentre os quais um sindicalista chamado Luiz Inácio Lula da Silva.

A ditadura voltou-se contra a UNI, procuraram controlar e esvaziar a entidade indígena. A Funai era presidida pelo coronel da reserva do Exército João Carlos Nobre da Veiga, um ex-assistente de segurança da Docegeo, subsidiária da estatal Companhia Vale do Rio Doce. Quando foi escolhido para o cargo, Veiga disse que “só conhece a história do índio gaúcho Sepé Tiaraju”, um guarani do século 18. Ele trouxe inúmeros militares para dentro da Funai, tanto que sua gestão ficou conhecida como “o tempo dos coronéis”.

No início dos anos 80, a Procuradoria Jurídica da Funai disse que aceitaria a UNI, desde que ela funcionasse “com a assistência e sanção do órgão tutelar”, ou seja, sob completo controle da Funai. A Agência Central do SNI também apontou “inconveniência e pela inviabilidade legal da criação” da entidade. Em 1980, o ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência, o general Golbery do Couto e Silva, um dos conspiradores do golpe de 1964, repassou ao então ministro do Interior, Mario Andreazza, “de ordem do senhor presidente da República [o ditador João Figueiredo], orientação no sentido de que a Funai se abstenha de qualquer providência ou ajuda tendente a estimular a constituição da entidade”. Com o tempo, sabotada, e também por dificuldades internas de organização, a UNI se esvaziou e acabou extinta.

Marçal de fato assustava a ditadura. Três anos antes do seu assassinato, ele havia discursado em tom profético na frente do Papa João Paulo II na sacada do palácio episcopal de Manaus, no Amazonas, durante a primeira visita do líder da Igreja Católica ao Brasil: ``Pesamos à Sua Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte de nossos líderes, assassinados friamente por aqueles que tomam o nosso chão, que para nós representa a nossa própria vida e a nossa sobrevivência nesse grande Brasil, chamado um país cristão´´.

Marçal fora escolhido pela UNI para falar em nome de seus parentes. “Represento aqui o Centro-Sul desse grande país, a nação kaingang que perdeu recentemente seu líder. Foi assassinado também o Pankararé, no Nordeste. Perdeu o seu líder porque quis lutar pela nossa nação. Queriam salvar a nossa nação, trazer a redenção para o nosso povo. Mas não encontrou redenção, mas encontrou a morte.´´

Marçal fora escolhido pela UNI para falar em nome de seus parentes. “Represento aqui o Centro-Sul desse grande país, a nação kaingang que perdeu recentemente seu líder. Foi assassinado também o Pankararé, no Nordeste. Perdeu o seu líder porque quis lutar pela nossa nação. Queriam salvar a nossa nação, trazer a redenção para o nosso povo. Mas não encontrou redenção, mas encontrou a morte.”

Marçal era um grande orador, referido poeticamente como “o banguela dos lábios de mel”. Em 1955, ao visitar a missão presbiteriana na aldeia indígena de Dourados, o escritor Orígenes Lessa (1903-1986) ouviu o guarani fazer uma “prece admirável, toda construída em estilo bíblico. Uma voz doce, respirando fervor”. Na cidade de Patrocínio (MG), Marçal estudou por três anos no Instituto Bíblico Eduardo Lane, fundado nos anos 20 por reverendos norte-americanos a fim de dar capacitação teológica e pessoal a futuros missionários em lugares afastados dos centros urbanos do Brasil. Ali aprendeu “homilética [ofício de pregar sermões religiosos], exegese e oratória”.

Darcy Ribeiro (1922-1997), o conhecido antropólogo e ex-ministro de João Goulart, disse que Marçal era “o índio mais eloquente” que já conhecera. Um pouco da capacidade retórica de Marçal pode ser visto no filme “Terra de índios” (1979), de Zelito Viana (por exemplo aqui a partir dos 3min26s).

Quase dez anos depois da morte de Marçal, em março de 1993, eu cobri como repórter de um jornal hoje extinto no Mato Grosso do Sul o primeiro julgamento do acusado de ser o mandante do crime, o fazendeiro Líbero Monteiro de Lima, cuja propriedade incidia sobre boa parte da terra indígena. Em uma semana de muito calor, com dezenas de pessoas aglomeradas em frente à Câmara de Vereadores da cidade de Ponta Porã (MS), na fronteira com o Paraguai, os indígenas dançaram e cantaram pedindo justiça. Mas foi tudo em vão, Líbero acabou absolvido por seis votos a um. Num dos momentos mais dramáticos do julgamento, o promotor de Justiça encarregado da acusação jogou uma porção de papéis para o alto, dizendo que “eles não valiam nada”. Era uma ironia à linha da defesa apresentada pelo fazendeiro, que apontou diversos buracos na investigação. O principal defensor, um talentoso e requisitado criminalista chamado Renê Siufi, explorou habilmente as inconsistências do inquérito.

A investigação da Polícia Federal foi sabotada desde o começo, como mostram os documentos hoje abertos à consulta e a memória do ex-delegado do caso. Não havia pessoal nem estrutura suficientes para o trabalho. O delegado ficou apenas 25 dias na presidência do inquérito. Foi trocado abruptamente por ordens superiores. Em casos de homicídio, os primeiros passos de uma apuração são os mais críticos. No caso de Marçal, ela ficou parada nada menos que 48 dias, de dezembro de 1983 a fevereiro de 1984. O governo do Estado distribuiu uma versão sobre o homicídio que se mostrou falsa, o que colaborou para mais confusão. O juiz do caso, Luiz Carlos Saldanha Rodrigues, certa vez escreveu, em despacho no processo, que a polícia agiu “sem proceder ao isolamento da área [do crime], sem proceder ao exame do local e sem apreender os objetos que tivessem ligação com o crime ou que viessem a facilitar a descoberta da autoria”.

Um ex-funcionário de Líbero, Rômulo Gamarra, chegou a ser preso, mas acabou solto. Diferentes testemunhas informaram que Gamarra, pouco antes do assassinato de Marçal, tinha pressionado indígenas a deixarem o Pirakuá, exatamente a terra indígena pela qual Marçal lutava em desacordo com o fazendeiro. A viúva de Marçal também declarou que Gamarra pressionou seu marido, até suborno em dinheiro foi oferecido e rechaçado por Marçal. Mas o tribunal do júri considerou que não houve prova de mando de Líbero e também da autoria do crime por Gamarra. Ambos foram absolvidos. Depois de libertado, Gamarra nunca mais foi encontrado e até agora é considerado um desaparecido. Teria hoje 98 anos de idade. Libero foi submetido a um segundo julgamento, do qual também saiu absolvido. Ele morreu em 2009.

Marçal foi assassinado após inúmeras advertências encaminhadas ao governo a respeito de sua segurança física terem sido desconsideradas ou relativizadas. Era um crime anunciado. Cinco anos depois, o país e o mundo se escandalizariam com uma situação semelhante que antecedeu o assassinato do ambientalista e seringalista Chico Mendes, no Acre.

O Estado brasileiro, em especial o Estado militar brasileiro, falhou totalmente na hora de dar proteção a Marçal – e também por isso deveria ser penalizado, no mínimo como exemplo histórico. Passadas quatro décadas do crime, o Brasil tem hoje, pela primeira vez em 523 anos, um ministério específico e um órgão indigenista comandados por duas indígenas, Sônia Guajajara e Joênia Wapichana, legítimas representantes dos movimentos indígenas que têm suas raízes lá na UNI, formada depois da experiência das assembleias indígenas iniciada corajosamente ainda nos anos 70, em plena repressão militar. O próximo dia 25 seria uma oportunidade de se fazer certa justiça, ao menos anunciar tal disposição, para Marçal de Souza, seus familiares e os indígenas Guarani, que agora podem buscar, via MPF, algum tipo de reparação. Parafraseando o que ele disse ao Papa João Paulo II, Marçal não encontrou a redenção, mas sim a morte impune.

 (*) Colunista da Agência Pública


 

 


 
      Vigiar e punir?


        Sergio Pereira*   
                                                               

        Caras amigas e amigos, dias desses recebi algumas mensagens sobre um projeto de lei que havia sido aprovado na Câmara de Vereadores do Município de Corumbá, no qual se “Dispõe sobre a proibição da exposição, de qualquer forma, de crianças e adolescentes, em atividades ou eventos escolares, danças, manifestações culturais e exposições de arte que contribuam para sexualização precoce e a erotização infantil, no âmbito do Município de Corumbá, e dá outras providências.” (Câmara Municipal de Corumbá, PL 042.2022, Processo 062.2022, aprovado em 28/06/2022).
             É importante lançar um olhar questionador sobre esse projeto de lei, que à primeira vista parece se preocupar profundamente com a integridade física, psíquica e moral das nossas crianças e adolescentes. Contudo, essa preocupação e dedicação proposta e aprovada no PL já está subscrita em lei há tempos, caros vereadores e vereadora, mais precisamente nessa forma, LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990, onde se dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA.

    Portanto, a preocupação em produzir uma lei menor em detrimento de uma lei maior é deveras desnecessário. Podemos observar que no Art. 17 – “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais” (BRASIL, 1990), - já está garantida a defesa desta criança e ou adolescente.

     A obviedade da lei em proibir a exposição, no âmbito do ensino básico do Município de Corumbá e de qualquer outra instituição, a coreografias pornográficas, eróticas ou obscenas, que exponham crianças e adolescentes à erotização precoce é gritante e desnecessária, pois isso já está garantido no ECA, caros vereadores e vereadora. Sugiro a leitura e análise deste estatuto tão importante e criticado ultimamente pelo mandatário da nação e seguido por outros e outras revisionistas da história.

      Dessa forma, se já há lei que garanta a dignidade da criança e do adolescente, onde todos e todas devemos nos envolver por esse cuidado, conforme cita o Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (BRASIL,1990). Porque então, não haver um engajamento no cumprimento dos artigos do ECA, onde não só é garantido o cuidado com a exposição sexual, mas aos direitos a uma educação digna, à alimentação e o fortalecimento dos núcleos familiares, à assistência jurídica quando necessária, a uma formação para o trabalho?
       Que tal caros vereadores e vereadora, não pensar em projetos de lei que estimulem o fortalecimento da Fundação de Cultura do Pantanal, para ofertar com bolsas de estudo vagas nas oficinas de dança e na Escola de Música Manoel Florêncio, aulas de instrumentos musicais.
             Não é lançando um projeto de lei que já é subscrito em lei maior, que vossas senhorias irão contribuir para que não haja uma “erotização precoce” das nossas crianças. Não é lançando um lençol de dúvidas sobre nossas escolas de ensino básico e academias de dança, que vocês irão afastar nossos infantes e adolescentes do perigo da prostituição, pornografia e exploração sexual. Mas, com políticas públicas afirmativas, onde se foque na diminuição da desigualdade social que de fato, nos leva à vulnerabilidade. Podem acreditar, que nós professores e professoras, membros das comunidades escolares, estamos preocupados com o risco de uma erotização precoce e sabemos em qual lei nos apoiar quando este risco é evidente, conforme o “Art. 75. Toda criança ou adolescente terá acesso às diversões e espetáculos públicos classificados como adequados à sua faixa etária” (BRASIL, 1990). Assim, quem descumpre este dever, incidi em crime.
          O ECA é muito claro quanto vossa dita preocupação, caro corpo de legisladores municipais “Art. 71. A criança e o adolescente têm direito a informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”. O respeito à sua condição peculiar de criança e adolescente não permite que expressões sexuais sejam de alguma maneira apresentadas em escolas e ou academias, de maneira a provocar uma erotização precoce.
             Mas, o que podemos observar por trás dessa cortina de preocupação moral? Há uma névoa em determinar que a cultura periférica é um elemento a ser banido das escolas e outros espaços culturais, onde o ritmo funk é visto como o vilão que atenta contra a moral da sociedade. Será que a discussão e compreensão dos fenômenos promovidos pela indústria cultural não deveriam ser debatidos e refletidos criticamente por nossos sistemas de ensino, comunidades escolares, promotores de políticas públicas e legisladores?

      A saída para a erotização infantil, gravidez precoce, violência e exploração sexual, de fato não está na proibição de eventos de dança e manifestações culturais nas escolas e ou academias. Não há uma resposta simples para esses problemas complexos que envolvem nossa sociedade, mas o que parece óbvio é que esse projeto de lei 042.2022 não o é. 
         Ajudem, portanto, a promover ações de políticas públicas realmente efetivas, que ocupem nossas crianças e adolescentes com atividades culturais, formativas e de entretenimento, visitem os bairros e vejam os espaços onde pode-se promover algo emancipador da juventude, vejam os campinhos de futebol, as praças, o abandono da juventude do campo e do Pantanal, sem possibilidade de acesso a bens culturais formativos e de entretenimento.
        Corumbá é o berço da cultura no Mato Grosso do Sul. Ao invés de deitarem uma espada moral sobre os pescoços de quem ainda promove alguma arte, nos apoiem, nos financiem, nos incentivem, não busquem destruir o pouco de essência das manifestações culturais que ainda resistem em nosso município.
           Nós educadores e educadoras, arte educadores, bailarinos e bailarinas, músicos e demais artistas não somos os “culpados” pelo que essa lei “tenta combater” e àqueles ou àquelas que o fizerem sejam enquadrados no ECA: “Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento: Pena - detenção de seis meses a dois anos” (BRASIL, 1990).
         Fato é que há uma névoa sobre esse projeto de lei, onde fica subentendido o obscurantismo e a censura que já vigoraram em outras épocas e deve ser sempre rechaçada no Brasil. A régua moral que medirá as manifestações culturais sobre o que é ou não uma “dança criminosa” será segurada por quem? De qual forma? Com qual autoridade e metodologia? Tudo está muito nebuloso, conforme os tempos sombrios que vivemos nos últimos anos.
            Finalizo apelando aos legisladores e à única vereadora de Corumbá, que revisem seus conceitos e preconceitos, que olhem para os problemas que de fato afligem nossas comunidades, para que assim possamos construir uma consciência crítica em nossas crianças e adolescentes, família, poder público e sociedade em geral.

(*) Professor de Arte da Rede pública de Ensino Municipal, Mestre em Música pela UDESC e Doutorando em Educação pela UFGD


 

A profissão que pretende remunerar com amor

Kelly Costa*

Professora há dez anos, sempre me incomodou o fato dea que o (a) professor(a) da escola pública tenha que "investir" tanto dinheiro do seu próprio bolso para melhorar, minimamente, a qualidade das suas
aulas. Se não tiver uma boa impressora e um computador, deixará boa parte do seu salário nas "lojinhas de xerox". As atividades fotocopiadas são fundamentais para a realização das aulas, em especial para crianças que ainda estão em processo de aquisição da escrita.

Além disso, as salas precisam de apoio visual, os famosos painéis de EVA, que os professores alfabetizadores confeccionam para suas salas de aula e ainda os jogos pedagógicos que também são importantíssimos para deixar a aprendizagem mais lúdica, dinâmica e eficaz.

Xerox, painéis, jogos, cadernos de leitura, lembranças de datas comemorativas, promoções para melhorar a estrutura da escola, material extra para aqueles alunos que sempre estão sem seus materiais básicos estão entre os principais "investimentos" que o professor faz em seus alunos.

A educação tem um custo, e quando o Estado não faz sua parte, os pais não têm condições de arcar com esses valores, esse gasto sai do bolso de alguém, e, geralmente, é do bolso do professor.

Muitas vezes observamos os professores desembolsando serenamente todo esse dinheiro, aceitando com resignação sua missão de ensinar por amor. Mas por quê? Será que os salários são altos e eles se sentem constrangidos à doar um pouco para os seus alunos? Definitivamente, não. Além de baixos salários, os professores ainda são desvalorizados de todas as formas, salas superlotadas, sem estrutura, sem mobiliário adequado, muitas vezes deterioradas.

Os professores se veem obrigados a usar seu salário com materiais que deveriam ser obrigação do Estado porque é impossível dar aulas apenas com giz e lousa. E não dá para esperar que tal suporte venha da escola. A saída mais fácil, por incrível que pareça, é comprar logo com seu próprio dinheiro.

Além disso, ainda existe uma força abstrata, uma pressão social, que trata o professor como um missionário do amor. Um professor que não aceita tirar do seu próprio bolso, é visto como alguém duro, que não é sensível à condição do aluno, um mau profissional. Ao contrário, quanto mais o professor gasta com suas aulas e projetos, mais "reconhecimento" ele recebe. Com isso muitos caem na armadilha de pagar para trabalhar. Alguns, geralmente professores sem estabilidade, ainda o fazem por medo de perderem seus empregos.

Com o período de pandemia todos esses problemas estruturais da escola pública brasileira se agravaram. Nesse contexto, infelizmente, o professor segue sustentando a educação escolar dos seus alunos com seus baixos salários e quase nenhum reconhecimento.**

(*) Professora da rede municipal de Ensino e diretora do Simted

(**) Artigo publicado originalmente no Educação, Resistência e Luta - jornal impresso do Simted



A construção do Simted Corumbá desde a Carta Cidadão de 1988

Marco Antônio Oliva Monje

Fruto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - Carta Cidadão, os servidores públicos puderam se organizar, antes em associações, agora em sindicato, como no caso corumbaense da Associação dos Professores de Corumbá e Ladário (APCL), cujo mentor foi o professor Eneo Vila da Nóbrega.
Em assembleia geral realizada no auditório da E.E. Julia Gonçalves Passarinho, no comando dos trabalhos, o professor Raul Nunes Delgado propunha aos presentes a transformação de Associação para Sindicato, cuja denominação ficou sendo Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Corumbá e Ladário, aprovado pelos presentes.
Tempos depois, a professora Tânia, com ajuda do professor Monje e sua diretoria (na época presidente do Simted) iniciaram um debate amplo com os trabalhadores em educação do município de Ladário, onde surgiu um grupo de trabalho para desmembrar os camaradas de Corumbá e Ladário, surgindo então o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Ladário.
Neste mês de abril, comemora-se a construção do Simted de Corumbá, mas não se pode esquecer da APCL, que mesmo não sendo permitido a sua organização em forma de sindicato e em forma de Associação (aqui considero como revolucionários) para burlar a legislação vigente, construíram a história do atual Simted.
Vida longa ao Simted!
Vida longa aos trabalhadores em educação!
* Marco Antônio Oliva Monje é professor e ex-presidente do Simted Corumbá


As Origens Trágicas e Esquecidas do Primeiro de Maio

Jorge E. Silva

Maio já foi um mês diferente de qualquer outro. No primeiro dia desse mês as tropas e as polícias ficavam de prontidão, os patrões se preparavam para enfrentar problemas e os trabalhadores não sabiam se no dia 2 teriam emprego, liberdade ou até a vida.
Hoje, tudo isso foi esquecido. A memória histórica dos povos é pior do que a de um octogenário esclerosado, com raros momentos de lucidez, intercalados por longos períodos de amnésia. Poucos são os trabalhadores, ou até os sindicalistas, que conhecem a origem do 1° de maio. Muitos pensam que é um feriado decretado pelo governo, outros imaginam que é um dia santo em homenagem a S. José; existem até aqueles que pensam que foi o seu patrão que inventou um dia especial para a empresa oferecer um churrasco aos “seus” trabalhadores. Também existem – ou existiam – aqueles, que nos países ditos socialistas, pensavam que o 1° de maio era o dia do exército, já que sempre viam as tropas desfilar nesse dia seus aparatos militares para provar o poder do Estado e das burocracias vermelhas.
As origens do 1° de maio prendem-se com a proposta dos trabalhadores organizados na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) declarar um dia de luta pelas oito horas de trabalho. Mas foram os acontecimentos de Chicago, de 1886, que vieram a dar-lhe o seu definitivo significado de dia internacional de luta dos trabalhadores.
No século XIX era comum (situação que se manteve até aos começos do século XX) o trabalho de crianças, grávidas e trabalhadores ao longo de extenuantes jornadas de trabalho que reproduziam a tradicional jornada de sol-a-sol dos agricultores. Vários reformadores sociais já tinham proposto em várias épocas a ideia de dividir o dia em três períodos: oito horas de trabalho, oito horas de sono e oito horas de lazer e estudo, proposta que, como sempre, era vista como utópica, pelos realistas no poder.
Com o desenvolvimento do associativismo operário, e particularmente do sindicalismo autônomo, a proposta das 8 horas de jornada máxima, tornou-se um dos objetivos centrais das lutas operárias, marcando o imaginário e a cultura operária durante décadas em que foi importante fator de mobilização, mas, ao mesmo tempo, causa da violenta repressão e das inúmeras prisões e mortes de trabalhadores.
Desde a década de 20 do século passado, irromperam em várias locais greves pelas oitos horas, sendo os operários ingleses dos primeiros a declarar greve com esse objetivo. Aos poucos em França e por toda a Europa continental, depois nos EUA e na Austrália, a luta pelas oitos horas tornou-se uma das reivindicações mais frequentes que os operários colocavam ao Capital e ao Estado.
Quando milhares de trabalhadores de Chicago, tal como de muitas outras cidades americanas, foram para as ruas no 1° de maio de 1886, seguindo os apelos dos sindicatos, não esperavam a tragédia que marcaria para sempre esta data. No dia 4 de maio, durante novas manifestações na Praça Haymarket, uma explosão no meio da manifestação serviu como justificativa para a repressão brutal que seguiu, que provocou mais de 100 mortos e a prisão de dezenas de militantes operários e anarquistas.
Alberto Parsons um dos oradores do comício de Haymarket, conhecido militante anarquista, tipógrafo de 39 anos, que não tinha sido preso durante os acontecimentos, apresentou-se voluntariamente à polícia tendo declarado: “Se é necessário subir também ao cadafalso pelos direitos dos trabalhadores, pela causa da liberdade e para melhorar a sorte dos oprimidos, aqui estou”. Junto com August Spies, tipógrafo de 32 anos, Adolf Fischer tipógrafo de 31 anos, George Engel tipógrafo de 51 anos, Ludwig Lingg, carpinteiro de 23 anos, Michael Schwab, encadernador de 34 anos, Samuel Fielden, operário têxtil de 39 anos e Oscar Neeb seriam julgados e condenados. Tendo os quatro primeiros sido condenados à forca, Parsons, Fischer, Spies e Engel executados em 11 de novembro de 1887, enquanto Lingg se suicidou na cela. Augusto Spies declarou profeticamente, antes de morrer: “Virá o dia em que o nosso silêncio será mais poderoso que as vozes que nos estrangulais hoje”.
Este episódio marcante do sindicalismo, conhecido como os “Mártires de Chicago”, tornou-se o símbolo e marco para uma luta que a partir daí se generalizaria por todo o mundo.
O crime do Estado americano, idêntico ao de muitos outros Estados, que continuaram durante muitas décadas a reprimir as lutas operárias, inclusive as manifestações de 1° de maio, era produto de sociedades onde os interesses dominantes não necessitavam sequer ser dissimulados. Na época, o Chicago Times afirmava: “A prisão e os trabalhos forçados são a única solução adequada para a questão social”, mas outros jornais eram ainda mais explícitos como o New York Tribune: “Estes brutos [os operários] só compreendem a força, uma força que possam recordar durante várias gerações…”
Seis anos mais tarde, em 1893, a condenação seria anulada e reconhecido o caráter político e persecutório do julgamento, sendo então libertados os réus ainda presos, numa manifestação comum do reconhecimento tardio do terror de Estado, que se viria a repetir no também célebre episódio de Sacco e Vanzetti.
A partir da década de 90, com a decisão do Congresso de 1888 da Federação do Trabalho Americana e do Congresso Socialista de Paris, de 1889, declararem o primeiro de maio como dia internacional de luta dos trabalhadores, o sindicalismo em todo o mundo adotou essa data simbólica, mesmo se mantendo até ao nosso século como um feriado ilegal, que sempre gerava conflitos e repressão.
Segundo o historiador do movimento operário, Edgar Rodrigues, a primeira tentativa de comemorar o 1 de maio no Brasil foi em 1894, em São Paulo, por iniciativa do anarquista italiano Artur Campagnoli, iniciativa frustrada pelas prisões desencadeadas pela polícia. No entanto, na década seguinte, iniciaram-se as comemorações do 1 de maio em várias cidades, sendo publicados vários jornais especiais dedicados ao dia dos trabalhadores e números especiais da imprensa operária comemorando a data. São Paulo, Santos, Porto Alegre, Pelotas, Curitiba e Rio de Janeiro foram alguns dos centros urbanos onde o nascente sindicalismo brasileiro todos os anos comemorava esse dia à margem da legalidade dominante.
Foram décadas de luta dos trabalhadores para consolidar a liberdade de organização e expressão, que a Revolução Francesa havia prometido aos cidadãos, mas que só havia concedido na prática à burguesia, que pretendia guardar para si os privilégios do velho regime.
Um após outro, os países, tiveram de reconhecer aos novos descamisados seus direitos. O 1° de maio tornou-se então um dia a mais do calendário civil, sob o inócuo título de feriado nacional, como se décadas de lutas, prisões e mortes se tornassem então um detalhe secundário de uma data concedida de forma benevolente, pelo Capital e pelo Estado em nome de S. José ou do dia, não dos trabalhadores, mas numa curiosa contradição, como dia do trabalho. Hoje, olhando os manuais de história e os discursos políticos, parece que os direitos sociais dos trabalhadores foram uma concessão generosa do Estado do Bem-Estar Social ou, pior ainda, de autoritários “pais dos pobres” do tipo de Vargas ou Perón.
Quanto às oitos horas de trabalho, essa reivindicação que daria origem ao 1º de maio, adquiriu status de lei, oficializando o que o movimento social tinha já proclamado contra a lei. Mas passado mais de um século, num mundo totalmente diferente, com todos os progressos tecnológicos e da automação, que permitiram ampliar a produtividade do trabalho a níveis inimagináveis, as oitos horas persistem ainda como jornada de trabalho de largos setores de assalariados! Sem que o objetivo das seis ou quatro horas de trabalho se tornem um ponto central do sindicalismo, também ele vítima de uma decadência irrecuperável, numa sociedade onde cada vez menos trabalhadores terão trabalho e onde a mutação para uma sociedade pós-salarial se irá impor como dilema de futuro. Exigindo a distribuição do trabalho e da riqueza segundo critérios de equidade social que o movimento operário e social apontou ao longo de mais de um século de lutas.

* Jorge E. Silva é membro do Centro de Estudos Cultura e Cidadania – Florianópolis (CECCA) 



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